27 novembro 2007

A bondade do soteropolitano e a difícil vida das estrelas

Acidentes de carro podem ser situações interessantes. Ontem, eu e um amigo estávamos subindo a ladeira da rua do hotel Blue Tours e passamos por uma curva fechada. Renato reduziu a velocidade, parecia prever o que iria acontecer. Uma Land Rover desceu de frente para nós, pelo meio da pista. Renato freou. Por um triz não colidimos frente a frente. Passaram uns cinco segundos, pensei aliviado: “porra, essa foi por pouco”. De repente, BUM!

Levamos uma pancada furiosa na traseira do carro. Fiquei atordoado e, quando comecei a pensar em perguntar a ele se estava bem, olhei para o lado do carro: Renato estava lá fora impedindo a passagem de um Audi novo em folha. Uma garota bonita saltou do carro, reclamava loucamente com ele.

- Meu filho, como você pára o carro no meio da ladeira?
- E como você vê um carro parado na ladeira e não freia?
- O que fazia parado?
- O que acha?
- Tá tudo escuro, você em um carro preto, porra... Não vi!
- Levei uma fechada de uma Land Rover, se eu não parasse, o acidente teria sido sério.

Enquanto rolava essa discussão, apareceu um cara em uma caminhonete preta. Ele era bem moreno, com rabo de cavalo, vários brincos nas duas orelhas. Falou com a garota.

- Mariana, o que houve?
- Ele parou o carro no meio da ladeira e eu bati.
- Sim, isso eu já notei, mas o que houve?
- Ele disse que um jipe o fechou e aí... Enfim, eu estou sugerindo a ele que cubra o prejuízo dele e eu cubro o meu.

Eu e Renato ficamos observando os dois. A conversa continuou.

- Mariana, você bateu no fundo, minha querida. No Brasil, bateu no fundo, se fudeu.
- Não é justo!
- Minha filha, você está no Brasil... Se ele desse uma ré e batesse no seu carro, ainda assim, você estaria errada.
- Porra...

Renato entrou na conversa e falou com o rapaz.

- Tudo bem, cara? Você a conhece?
- Sim, a conheço.
- Pois é, uma pena, mas ela está errada, não posso assumir um erro que foi dela.
- Não importa se você está errado, o que importa é que ela bateu no seu fundo.
- É... Você mora por aqui?
- Sim, moro ali naquele prédio branco.
- Pois é. Essa rua precisa de melhorias, é muito fechada e as pessoas passam por aqui voando, é um absurdo.
- É, cara, mas eu não posso falar nada, se não a mídia vai dizer que estou tirando onda, sabe como é, né?
- A mídia?
- É. Qualquer coisa que eu faço, a mídia vai em cima.
- É?
- É.
- Ah... Tá...

Renato olhou para mim com cara de interrogação e eu segurei o riso. Encostou-se em mim e nos afastamos.

- Man, que história é essa de mídia? Quem é esse cara?
- Sei lá... Deve ser algum músico que se acha, para falar como se a gente já o conhecesse...
- Um tanto imbecil essa frase dele, não?
- Pode ser... Enfim...

Voltamos até os dois. Renato pegou o telefone da tal Mariana. Finalmente eu reconheci o cidadão; era um músico da banda Chiclete com Banana. Falei para Renato. Ele puxou conversa com o cara, se afastando da garota.

- Amigo... Você que conhece essa moça, me diz uma coisa, aqui para nós: posso confiar nela? Sei lá, ela tentou arrastar o carro depois da batida e eu passei na frente. Para mim ela tá cheirando a picareta, sei não, viu?
- Mas ela não é picareta não.
- Não mesmo? Sei lá... Você a conhece bem?
- Conheço.
- Ela mora por aqui também, é?
- Mora.
- Onde?
- Ali naquele prédio branco.
- Ah, bom! No mesmo prédio que o seu. Fico mais aliviado... Em que andar?
- Quarto. Quatrocentos e um.
- E o seu?
- Quatrocentos e um.
- Ahn?
- Ela é minha mulher...
- Sua... Mulher?
- É. Não se preocupe, ela não é desonesta, meu caro. Vou pagar o estrago do seu carro.
- Ah, tá... Tô mais tranqüilo... Desculpa aí... Não imaginei.
- Tá, já entendi...

Eu e Renato não pudemos esconder a cara de idiota. Mas tava difícil adivinhar isso, que eles eram casados. O cara aparece, vê que a mulher bateu o carro e não faz um carinho sequer, não pergunta se ela está bem... Vai dialogando da forma mais fria possível.

Quando o tal músico ia entrando de volta em seu carro, sem sequer dar um beijo na esposa, passou um cara em uma bicicleta, provavelmente trabalhava no hotel.

- O senhor me dá um autógrafo?
- Claro!

Deu o autógrafo do cara e virou para mim e Renato e disse:

- Pois é... Tá vendo porque não posso reivindicar melhorias para essa rua? Todos irão dizer que estou abusando do fato de ser uma estrela da música. Minha vida é assim, pago um preço alto por ser quem eu sou.

Renato deu um sorriso amarelo e eu dei um sorriso roxo. O cara se despediu da gente e se mandou. Largou a mulher lá. Renato checou o número do celular dela, na frente da própria, e eu fiquei tentando fechar o porta-malas. Nos despedimos e saímos. Machuquei a minha coluna e comecei a ficar de mau humor. Começamos a rodar e um motoqueiro parou do lado do carro.

- Man... O porta-malas está aberto.
- Eu sei, acabamos de bater.
- Falou.
- Valeu!

Seguimos um pouco e paramos em um outro semáforo. Uma senhora em uma caminhonete buzinou:

- Garotos, o porta-malas está aberto! Ô, juventude descuidada, meu Deus.
- Tá bom, tia, sabemos, obrigado.

Passamos pela frente do Nhô Caldos, um bar pseudo-brega-rock do Rio Vermelho e, novamente, pegamos o semáforo fechado. Um casal adolescente de preto que estava na calçada gritou:

- Aí, maluco! A parada dos fundos está aberta, tá ligado?
- Obrigado, sabemos!
- É nenhuma, “Brow”! Fecha essa porra senão vai dar merda!
- Tá bom!

Renato já estava irritado com a bondade do povo soteropolitano e eu já não tinha mais saco para dizer que já sabíamos que a porra do porta-malas estava aberto. O mais curioso é que Renato comprou esse carro há quinze dias e a tal Mariana comprou o Audi dela há dois dias. O orçamento do conserto do carro dela deu trezentos reais, o do carro de Renato deu dois mil e seiscentos.

Parece que o seguro dela não vai cobrir, por algum motivo que desconheço. Alguém vai se fuder. Ou ela ou Renato. Ou a estrela do axé.

20 novembro 2007

Queda Livre

Uma constatação tão óbvia quanto estranha eu tive – na verdade sempre tenho, em esporádicos momentos. O que estou fazendo aqui, afinal? A grande vantagem em ocupar o próprio tempo é não ter tempo para pensar nisso. A desvantagem dos momentos de ócio ou de pessoas desocupadas é essa; enxergam o óbvio, a verdade.

Viver e ter consciência de estar vivo é deprimente. Não tem nada de agradável na existência, tudo não passa de especulação, a gente fica tentando adivinhar coisas e procurando algo para acreditar. Tem gente que prefere pensar que já nasceu com o destino traçado, outros preferem acreditar que existe um Deus que está acima de tudo e que guia o caminho da humanidade. Ainda há os que se colocam como parte de uma unidade - que é o universo -, e tem também os que não acreditam em porra nenhuma, nem em si próprios; esses últimos normalmente são pessoas que detestam especular e só vivem em universos práticos, onde não cabem “crenças”.

Minhas crenças são conscientemente especulativas, mas nem por isso deixo de vivê-las intensamente. “Outro jeito não há, já que eu tenho que estar solto a descer”... Disse Fábio Cascadura, na música “Queda Livre”. Porra, já que eu não tenho nenhum plano fabuloso para um suicídio cinematográfico – aliás, talvez eu faça isso assim que o meu livro sair; é uma boa maneira de despertar interesse de alguém e aumentar as vendas –, tenho de me divertir.

Pensar entristece demais. É cruel porque nada, absolutamente nada, é real. O que de certa forma torna tudo uma angústia relativamente interessante, é um mundo de inúmeras verdades. E é baseado nessa tese que estou “aconselhando” a mim mesmo a soltar-me da forma mais completa e verdadeira.

Em diálogos com as poucas pessoas interessantes que conheço, noto algumas delas sofrendo do mesmo mal que eu. E todos desejam tornar tudo mais divertido, ou seja, acho que vou ter companhia para a minha queda livre. Bem ou mal, é a melhor forma de viver. É melhor cair livre do que aprisionado por desejos e idéias que não serão realizadas; e caso sejam, novas idéias e desejos aparecerão, percebendo-se, assim, que o xis da questão não são as realizações, mas o eterno buraco vazio que é a existência.

A quem interessou esse texto, aconselho a lê-lo novamente ouvindo a música “Queda Livre”, de Fábio Cascadura.

A queda tem de ser livre.