Depois do porre estratosférico que tomei com Cury e do mico que pagamos na trilha da cachoeira da Fumaça, nosso grupo passou o dia inteiro dormindo. No início da noite, a gente já estava armando como seria a trilha do dia seguinte. Eu e Cury não podíamos ver nada alcoólico na nossa frente. Parei em um restaurante bem simples pra pedir informação sobre um bom guia. Abordei um garoto de uns doze anos.
- Tudo bem? Me indicaria um bom guia local?
- Bem, eu to por fora, maluco... Mas pera aí... Adalzira! Diz um nome de um bom guia! Como é o nome daquele cara que tem o nariz que parece o pinto de Cesinha?
Porra, a vontade de vomitar veio na hora. O nome da mulher era Adalzira. Adalzira - Abaíra. Na hora fiz a associação e a minha barriga embrulhou.
Sentamos no bar “Veneno” e o pessoal começou a tomar cerveja, com exceção de Cury e eu. O tempo foi passando, a birita subindo na cabeça do povo e um dos rapazes foi procurar um lugar para lavar as mãos porque o banheiro do “Veneno” havia sido utilizado por alguém que provavelmente tinha comido um gambá. Cury foi junto com ele. Passaram-se alguns minutos e, do nada, todos ouviram uma gritaria. Nosso amigo berrava feito um louco e Cury estava colado frente a frente com um senhor de cara esquisita. Me aproximei da confusão e notei que Cury estava incolor. “Será que ele está enjoando de novo do porre de Abaíra”?
- Cury, tudo bem? O que houve? Por que ele está nesse estado, encarnou a pomba gira, foi?
- Man...
- Fala...
- Olha o velho...
- O que é que tem?
- Man...
Eu nem falei com o nosso amigo nervosinho, o cara estava transtornado, dois outros caras do nosso grupo seguravam ele.
- Cury, qual foi?
- Man, ele quis bater no velho...
- Por que, man? O que rolou?
- Man, o velho estava com uma faca na minha barriga... Um pouco mais para baixo, ele me faria uma fimose...
- Como assim? O cara botou a faca na sua barriga, cara?
- Sim...
- E o que você fez para isso acontecer? Por que queriam bater no velho?
Cury estava sem cor, com o olhar completamente longe, nitidamente tentando processar que há alguns segundos atrás, poderia estar morto.
- Angelo, ele foi ao banheiro no boteco do velho e não tinha toalha para enxugar as mãos...
- Porra Cury, ele pirou por isso? Pela falta de uma toalha dentro de um banheiro?
- Não man... Espere eu terminar, caralho!
- Fale, inferno!
- Man...
- Fala...
- Acredite...
- Acreditar no quê, se você não fala, porra!
- Ele saiu do banheiro gritando que aquele lugar era uma espelunca e questionando que tipo de imbecil abre um bar e não coloca uma toalha no banheiro...
- Que merda... Coisas da cachaça...
- Pois é...
- E você, fez o quê para se meter nessa?
- Sei lá, man... Fui separar uma provável confusão e quase virei um “Pingo de Ouro”...
- “Pingo de Ouro”?
- É...
- Como assim?
- “Pingo de Ouro” não é aquele salgadinho que é tipo uma rosquinha, com um furo no meio?
- É...
- Então?
- Então o quê, Cury?
- É isso.
- Isso o quê?
- O “Pingo de Ouro”.
- O que tem o “Pingo de Ouro”, man?
- Man... Nada... Esquece...
Voltamos para a mesa, o nosso amigo ainda estava transtornado, só que um pouco mais calmo. Nos sentamos e Cury não parava de olhar para a própria barriga. Minha namorada estranhou a atitude.
- O que foi, Cury? O que tanto olha para baixo?
- Nada não...
- Nada não o quê? Diz o que houve...
Notei que ele não queria contar o episódio da faca pra ela; não queria assustar o pessoal, principalmente as garotas, que iriam querer sair dali na hora em que soubessem que um de nós quase havia virado um “Pingo de Ouro”.
- Relaxe, eu to bem...
- Cury, fala logo, que agonia!
- Ta bom...
- Então, o que houve?
- Afoguei uma formiga...
- Hã?
- Afoguei uma formiga...
- Como assim?
- Foi sem querer...
- Você afogou uma formiga?
- Foi...
- Por que fez isso?
- Não sei. Vomitei e ela estava passando na hora...
- Matou ela com seu vômito?
- Foi... Isso é que me deixa mais deprimido... Como posso afogar um ser vivo com meu próprio vômito?
- Quando foi isso?
- Na Fumaça, lembra que eu vomitei o percurso todo?
- Como eu iria esquecer? Você e o debilóide do Angelo... Sim, e por que lembrou disso agora?
Cury continuava tentando disfarçar e sustentar a mentira para não ter que falar sobre o incidente da faca.
- Lembrei disso agora...
- Por quê?
- Porra, você também quer saber de tudo, hein?
- Claro! Você estava animadíssimo e do nada, depois do nosso querido nervosinho dar um pití discutindo com o velho do bar ao lado, você me aparece com essa cara... Fale logo, vá...
- Ta vendo aquela menina ali de vermelho?
- Sim, estou...
- Ela não parece uma formiga?
- Como?
- Ela é igual a uma formiga...
- A de vermelho?
- É...
- O que tem nela que parece uma formiga, Cury?
- Não sei... Ela me lembrou uma formiga, tem dois lados de franja que me lembram as antenas da que eu assassinei...
- O que faz alguém parecer uma formiga? Caralho, e você nem bebeu hoje, hein?
- Sei lá... Me deixa curtir a deprê...
Enquanto Cury se esforçava para sustentar a desculpa mais idiota do universo, tentei ajudar para que o papo terminasse logo.
- Cury, eu vi no National Geographic que as formigas sabem nadar.
- Jura, man?
- Juro.
-Sério, man?
- Sério...
- Mas elas sabem nadar em vômito?
- Porra, man... Aí eu não sei, né?
Eu tentava sinalizar com os olhos para ele não render mais o assunto fazendo intervenções mais imbecis do que o próprio assunto era, só que ele não percebeu... Minha namorada voltou a conversa.
- Angelo, as formigas não sabem nadar... De onde tirou essa idéia cretina?
- Do National Geographic...
- Nunca vi isso. E acompanho o National Geographic...
- Bem... Foi uma edição especial...
- Como assim, “edição especial”...
- É... Uma feita somente para a África...
- África? E como você teve acesso a uma edição feita somente para a África?
- Um amigo meu que nasceu no Sudão...
- Quem é esse, se eu nem conheço?
- É o Habumbaletô...
- O quê?
- Habumbaletô...
- Como eu nunca ouvi falar desse seu amigo com um nome desses? Que história idiota é essa, senhor Angelo Monteiro?
- Tinha tempo que eu não o via, é por isso...
- E que porra de nome é esse?
- É coisa da tribo da família dele...
- E o que significa esse palavrão?
- Bem...
- Não sabe? Ele não é seu amigo?
Eu estava me complicando e só fiz piorar as coisas.
- Na verdade... Significa... Torcicolo de Girafa.
- Como?
- É... Torcicolo de Girafa...
Cury se segurava para não cair na gargalhada. Pelo menos ele desencanou de quase ter sido morto.
- Ô gata, eu sei lá o porquê desse nome! Pergunta para a mãe dele... Só sei que significa Torcicolo de Girafa.
- E girafa tem torcicolo?
- Porra, deve ter, né? Pra terem colocado esse nome... Se nós, que temos esse pescoçinho, temos, o que diria aquele bicho estúpido...
- Sei não, Angelo... Muito estranha essa história... Em Salvador vamos conversar melhor sobre esse tal de Habumbaletô ou Torcicolo de Girafa, sei lá...
O papo terminou e no dia seguinte, voltamos para Salvador. Minha namorada levou uns dois meses querendo conhecer Habumbaletô. Foi foda para me sair dessa; tentei arquitetar com um amigo que tinha cara de africano, um plano para ele se passar pelo tal, só que ele era péssimo ator, a situação ficaria ainda mais ridícula. Espero que ela não leia esse texto. Tem anos que nos separamos e somos amigos, mas até hoje ela não sabe que o nome Humbaletô, eu tirei de uma revista que eu colecionava chamada “A Espada Selvagem de Conan”.