Depois de meia hora de sono, completamente bêbado, fui acordado pelos meus amigos que estavam insuportavelmente bem humorados. O teto estava rodando em direções diversas e eu fui até o quarto onde Cury estava dormindo. Quer dizer, dormindo não, quase morto. Ele estava na parte de cima de um beliche e eu deitei na parte de baixo, do lado inverso. Trocamos olhares de desespero sem sequer ser citada uma palavra. Eu pensava dialogando com ele.
- Man, é óbvio que nós não vamos, né?
- Rapaz... Precisamos ir... Seria a desfeita do ano...
- Sério? Subir a cachoeira da Fumaça, Cury? Assim? No estado que nos encontramos? Man, acho que não consigo subir nesse beliche...
- Rapaz, nos fudemos, mas vamos ter que ir...
Levantamos sem dar uma palavra sequer. Executei a pior escovada de dentes da minha vida, a pasta de dentes tinha gosto de Abaíra. Seguimos para a van, já estavam todos nos esperando. Cury entrou no carro e contou uma piada rápida e ridícula. Só eu ri. Contou outra, pior ainda. Só eu ri novamente. Ao contar a terceira, que eu mesmo já estava constrangido por estar achando engraçado, ele se tocou.
- Man, por que ninguém está rindo de minhas piadas, aliás, só você está achando graça?
- Cury, eu estou bêbado e te dando apoio moral. Vamos precisar um do outro, estamos prestes a subir a Fumaça de virote e com litros de cachaça no organismo.
- Porra, man... É mesmo, né? To enjoado pra caralho...
- Felizmente eu não estou. Pelo menos por enquanto...
Chegamos ao local para estacionar o carro. O motorista da van se chamava Salvador. Era uma cara que vivia com um sorriso na cara, meio de deboche, sei lá. O pessoal estava empolgado, combinando a velocidade da subida e os pontos onde todos deveriam parar para descansar e tomar água. Eu tentava lembrar de alguma oração judaica cristã e Cury começava a perder a cor dos lábios.
Iniciamos a subida e em menos de cinco minutos o pessoal já estava lá na frente. Eu e Cury ficávamos cada vez mais para trás ouvindo gritos da minha namorada.
- Vamos, meu gato, acelera! Você não é atleta? Puxe Cury com você!
- Pode deixar! Vamos lá, Cury, vamos dar um gás!
Era impossível. Eu tentava dar um apoio, mas o cara estava parecendo Bela Lugosi nos filmes antigos do Drácula.
- Ângelo...
- Diga, Cury...
- Man, eu preciso parar...
- Como assim? A trilha começou agora, man...
- Man, eu preciso vomitar...
- Putz... Bem, pode ser até melhor mesmo, assim você melhora...
- Man, vou parar nessa pedra aqui...
Tentei gritar para o pessoal esperar, mas estavam muito longe, desisti. Cury começou a botar as tripas para fora. Era deprimente ver aquilo, mas eu precisava dar uma força e ficar por perto. Segurei no ombro dele, sabem aquela história de “você não está sozinho”, né? O vômito tinha cheiro de cachaça, tive que me afastar ao sentir para que eu mesmo não vomitasse.
- Ângelo?
- Diga, man.
- Escoste aqui na pedra...
- Para quê, man?
- Venha cá, porra!
- Man, para quê? Quer que eu veja o seu vômito, é?
- Exato...
- Vai se fuder, Cury! Não acha que tenho mais o que fazer? Que fetiche doente é esse?
- Não man, relaxe, chegue aqui, na moral...
- Porra... O que é, desgraça?
- Olhe aqui...
- O que é que tem? To vendo uma poça de vômito com um cheiro horrível de cachaça. O que tem de interessante nisso?
- Man, tem uma formiga tentando sair da poça de vômito, veja isso. Acho que afoguei a coitada. Será que devemos ajudar? Devemos tirar ela daí?
- Man, sei lá... É uma imagem bizarra mesmo... Tira ela daí.
- Não man... Tire aí, na moral...
- Como?
- Tire aí, por favor...
- Eu?
- É...
- Como assim?
- Porra, man, salve ela... É desnecessário, estamos em um lugar desses, vamos matar uma formiga? É foda, né?
- Sim, man, concordo... Mas você quer que EU tire ela daí?
- É...
- Por que eu? Ficou maluco? Você vomita o seu intestino inteiro e quer que eu meta a mão nessa gosma para salvar uma formiga? Por que você mesmo não enfia a mão aí? O vômito é seu, não é?
- Porra, man... Tenho nojo...
- Não diga! Você tem nojo do seu vômito... E o que te faz achar que eu não tenho, seu sem noção?
- Porra, man, você é meu amigo...
- Cury, na moral, vomite sua porra aí, na boa... Não vamos para o inferno só porque você assassinou uma formiga, em pleno Vale do Capão...
- Man...
- O que é, Ricardo Cury?
- Eu não vou dormir direito se não salvarmos essa formiga...
- Man, pelo tempo que estamos tendo essa discussão imbecil, ela já deve ter morrido. Ou então está bêbada...
- Não, não morreu não, olha aí, ela ta andando ainda. Ou melhor, nadando...
- Man, eu não vou enfiar a mão aí...
Enquanto a gente discutia, o grupo inteiro voltou e viu aquela cena toda: Cury deitado na pedra, com o rosto totalmente pálido, a boca branca e toda melada, e eu com a cara mais irritada do mundo. Minha namorada já demonstrava sinais de chateação.
- Porra, Ângelo! A gente veio para o Capão fazer essa trilha, curtir o nosso aniversário de namoro aqui... Aí você enche a cara no primeiro dia, some a noite inteira e me deixa dormir sozinha... Agora ficam os dois imbecis passando mal aí, em plena trilha da Fumaça... Por que vocês não voltam? Que porra!
Ninguém deu uma palavra. Tive que engolir essa bronca calado. Todos ficaram em silêncio por uns vinte segundos. Esse silêncio foi quebrado.
- Rauuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuullllllllllllllllllllllllllllll! Rauuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuullllllllllll! Rauuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuulllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll!
- Pessoal, sei que estão putos com a gente, mas será que não percebem que Cury não está bem?
Essa frase de clemência só piorou a situação com a minha namorada.
- Ângelo! Vocês deveriam ter pensado nisso ontem! Sabiam que nós íamos fazer a Fumaça, porra! Às seis da manhã! Beberam porque quiseram! Fodam-se os dois! Cury, tomara que você vomite os seus testículos pela boca!
Ninguém falou mais nada e o grupo continuou. Cury, depois de mais uns dez segundos de “gofadas”, fez um esforço monstruoso e se levantou.
- E aí, Cury? Tem condição de continuar? O “raulll” já te deixou melhor?
- Não...
- Mas vai deixar... O “raul” é o anjo da guarda dos bêbados que estão sofrendo de enjôo... Quer voltar?
- Não...
- E aí? Eu também estou fudido, mas posso continuar... O que acha? Agüenta?
- Não...
- O que faremos então? Quer dar um tempo aqui sentado e depois continuar?
- Não...
- Porra, man! Você quer fazer que porra então? Pare de dizer “não”, porra! Parece um papagaio!
- Ta, man... Vamos sentar uns dois minutos, eu preciso me situar, tem um monte de montanhas rodando, ta foda... To vendo até passarinhos azuis na minha frente, de não na merda que estou...
- Cury...
- Que é?
- Os passarinhos azuis que você está vendo realmente estão aqui em nossa frente, seu imbecil... Essa imagem não é fruto de sua imaginação bêbada... São comuns aqui na região...
Ficamos sentados quietos um tempo até ele se recuperar e seguimos com um pouco mais de pressa para tentarmos alcançar o nosso grupo.